A comparação entre as emissões primárias de ações (IPOs) dos mercados brasileiro e americano permite compreender a trajetória de desenvolvimento que o mercado de capitais brasileiro deverá seguir, se os fundamentos macroeconômicos forem estabilizados e o viés pró-mercado se mantiver.
Depois de alguns anos de “baixa”, as ofertas públicas iniciais (IPOs) de ações retornaram com intensidade à B3 a partir do final de 2020. Seja para a captação de recursos para expansão, para desalavancagem da estrutura de capital ou para a saída de sócios, empresas de diferentes segmentos e tamanhos decidiram ir à bolsa, aproveitando a liquidez de mercado e a busca de oportunidades pelos investidores. Porém, ainda que o mercado de IPOs estivesse aquecido em 2021 e o número de operações tenha alcançado níveis vistos apenas no triênio 2006-2008, o mercado de capitais brasileiro ainda percorre suas etapas iniciais, principalmente quando comparado ao mercado americano.
Conforme detalhado nos Gráficos 1 e 2 a seguir, enquanto no Brasil (B3) ocorreram 52 ofertas públicas de ações em 2021, nos Estados Unidos este número alcançou 312, considerando apenas a bolsa de tecnologia NASDAQ (National Association of Securities Dealers Automated Quotation) e excluindo-se as emissões de SPACs (Special Purpose Acquisition Company), de fundos, entre outras estruturas que adicionariam centenas de operações a este total.
Figura 1: Número de ofertas públicas iniciais de ações no Brasil e nos Estados Unidos em 2021
Observa-se também que o ritmo das emissões no Brasil desacelerou fortemente a partir do segundo semestre, com apenas 3 observadas no último quadrimestre, em função do aumento das incertezas macroeconômicas e da deterioração dos fundamentos do país.
Figura 2: Distribuição mensal das ofertas públicas de ações no Brasil e nos Estados Unidos em 2021
No Brasil, não se observou uma concentração das ofertas públicas iniciais, que se distribuíram entre os mais diferentes segmentos, incluindo alimentício (3), saúde (4), tecnologia (10) e engenharia (1), entre outros. Já na NASDAQ, destaca-se a concentração das ofertas no segmento de Saúde/Tecnologia (Healthtechs), com 149 emissões, incluindo empresas de biotecnologia, lifesciences e pharma.
Não apenas o número de operações e a concentração setorial distinguem o mercado de ações brasileiro do americano. Pelos histogramas a seguir, verifica-se que há semelhança entre os dois mercados, quanto à proporção de empresas emissoras com valor de mercado inferior a US$ 250 milhões (32% no Brasil e 36% nos EUA). Entretanto, nos EUA há uma proporção maior (29% x 19%) de empresas emissoras com valor de mercado superior a US$ 1 bilhão.
Quanto ao porte da empresa, medido pela receita líquida anual, 62% das emissoras brasileiras apresentava receita anual de até US$ 200 milhões, enquanto nos EUA este percentual alcançou 44%, sinalizando o ingresso neste mercado de empresas em estágios mais avançados de sua trajetória de desenvolvimento e/ou o efeito de um mercado consumidor maior e com renda per capita superior.
Por outro lado, o que definitivamente distingue o mercado brasileiro de emissões primárias do americano é a maior aceitação, por este último, de empresas emissoras com prejuízos relevantes o que, teoricamente, dificulta o entendimento do valor – valuation – da empresa e, portanto, aumenta o risco do investimento. Esta maior propensão ao risco é explicada pelo perfil das empresas listadas na NASDAQ, uma bolsa de empresas de tecnologia. As emissoras são intensivas em ativos intangíveis e em gastos com P&D, marketing, equipe de tecnologia, entre outros essenciais para que o modelo de negócios avance e se consolide. Estes gastos, por sua vez, transitam pela Demonstração de Resultados (DRE), segundo o USGAAP, são relevantes nos estágios de desenvolvimento e contribuem de forma definitiva para a geração de prejuízos operacionais e líquidos. Os histogramas a seguir detalham este ponto. No Brasil, das 52 empresas que foram ao mercado, apenas 8 apresentavam prejuízos operacionais (15%). Na NASDAQ, este percentual alcançou 78% em 2021 (246 das 312 empresas).
O perfil das emissões na NASDAQ auxilia no entendimento da trajetória que o mercado de ações brasileiro pode seguir, caso os pilares macroeconômicos e os fundamentos se estabilizem e o viés pró-mercado avance. Cada vez mais o mercado de ações desempenhará seu papel principal e inicialmente planejado: servir de plataforma para o financiamento de empresas em estágios de desenvolvimento, com risco de performance e alto potencial de crescimento, mas com acesso restrito ao mercado de dívida – seja pelo perfil de seus ativos, pelo seu tamanho ou pela geração de prejuízo. Esta evolução aumentará o “cardápio” de ativos disponíveis aos investidores e exigirá que tanto estes como os analistas de equity desenvolvam conhecimentos distintos daqueles demandados na avaliação de empresas maduras e intensivas em ativos imobilizados.
Sobre os autores
Flávio K. Málaga, Phd. Finanças (FEA/USP), Partner.
E-mail: fmalaga@malaga-aas.com
Leonardo Issao Coelho, valuation analyst
E-mail: leonardo.coelho@malaga-aas.com